Um conto de minha mãe.
Wesley Faria
Lembro de um dia desses ter
acordado com um vazio no peito, parecia até que o sereno tinha recoberto meu
coração, como aquele frio que queima a plantação, frio que faz pardal sumir,
beija-flor se aquietar no ninho escondido em um pé de flor e de biquinha fechada
torcer para o vento ir embora, era isso, naquele dia acordei com vento dentro
do peito, fazia eco quando soava pelas paredes do meus medos mais profundos.
Levantei quieto e olhei o relógio, como de costume me atrasava para o ofício,
me ajeitei depressa e logo me despedi do povo de casa, pensei ter deixado o
sereno todo pelo caminho, ou que o banho tivesse esquentado meu peito e que o
sereno fosse diluído, dissolvido pela temperatura branda de riacho raso.
As molduras da lembrança são
como correntes em nossos pés, são calores que avermelham as mais pálidas faces,
faces de trigo recém nascido, faces de nuvem. Lembro que já sabia que o livro
seria um enorme bloco de notas em branco e as memórias a pena para a escrever
um conto de mim mesmo. As vezes é fácil entender que a vida tem pudores demais
e poetas de menos, também é fácil saber que não se pode deixar de registrar a
vida que quer rasgar o peito.
Naquele dia simples notei
coisas igualmente simples e como toda simplicidade, notei coisas que realmente importam,
o olhar de minha mãe se despedindo de mim ao deixar a casa construída com tanto
sofrimento pelo meu pai, casa que nunca chegou a ser finalizada, lembro do tom
de voz da mãezinha respondendo meu pedido de bênção “Que Deus te abençoe meu
filho”, lembro de ter sentido um nó na garganta quando percebi que haviam rugas
novas no lugar onde haviam lisas maçãs de rosto, notei o tempo saqueando a
vida. Lembro de ter parado ao fazer o sinal da cruz, ritual matinal ao descer
os degraus que me conduzem para fora da pequena vila onde ficam as casas de
minha família.
Parado na ruazinha onde passa
a condução lembro de ter olhado com olhos chorosos para a casa de onde acabara
de sair e ter visto o semblante de oratório dela a me abençoar, como quem diz
“volta...não vai trabalhar hoje não meu filho.” Fiquei pensando naquela imagem
e pedi a Deus que ela fosse apagada de minha memória para que meus dias fossem
mais fáceis, tolo pedido, se é mesmo Deus quem nos permite ter estas visões
para, quem sabe, ter orgulho de nós um dia desses. Se não fosse aquela imagem,
de minha mãe parada na janela, se não fosse meu pensamento de que ela olhava
para mim, me protegendo com o amparo de olhar de mãe, se não fosse isso tudo
aquele dia teria sido mais fácil de ser digerido, talvez minha mãe estivesse
olhando para outra coisa, para o céu, para o beija flor, para o galho da árvore
do quintal vizinho que teima em invadir nosso quintal, talvez minha mãe
estivesse mesmo orando, por algo que não fosse a mim mas aquilo que sentimos é
tudo que importa nessa vida e mesmo enganado os sentimentos chegam a nos
pastorear como ovelhas em um campo, eles nos conduzem até penhascos,
arranha-céus ou mesmo bancos de praça, e o que eu senti naquele dia me
acompanha até hoje e depois daquela manhã toda minhas memórias dolorosas sobre
minha padroeira se apagaram e percebi que mãe é um pedaço de Deus, percebi
também que o sereno no peito era Deus preparando a parede do meu coração, como
um João-de-barro faz com sua casa sem planta, só é preciso o sentimento, era
Deus preparando o lado de dentro do meu coração, deixando as paredes firmes e
confortáveis para receber a nova inquilina que se instalou e só vai sair quando
o coração já não for necessário, como semente brejeira que o vento leva,
preparando meu coração para a lembrança do olhar de minha mãe me cobrindo com
manta, me aquecendo os pés, me esfregando as costas e me agasalhando para que o
mundo não pudesse me ferir, o olhar de minha mãe que passou a ser o meu próprio
olhar.
Lembro de um dia desses ter
acordado com um vazio no peito e essa é só uma lembrança boa.
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