segunda-feira, 2 de setembro de 2013

Luz e Neblina / A dama Escarlate

Luz e Neblina / A dama Escarlate
W.Faria

Era tarde quando a porta abriu, as chaves foram colocadas delicadamente no móvel perto da porta, os passos sussurravam seus sons, como se não quisessem ser notados, como se nem ali estivessem. O chuveiro logo derramou sua cascata de renovo e em 20 ou 30 minutos a casa não passava de neblina recém saida pela porta entreaberta do banheiro. A toalha revestia o corpo como uma toga de algodão, foi quando percebi que a noite tinha se tornado uma cena saida de algum quadro impressionista, a penumbra dos móveis recheava a sala, a neblina coloria o chão como arbustos em florestas, florestas essas que permeavam minha imaginação desde crianças. De fato as florestas que conheci não representam um terço daquilo que minha mente infantil e sonhadora entendiam por selvas, matagais ou bosques, é fácil entender que para uma criança todo campo se torna encantado, toda árvore é um castelo e todo galho caído é a espada de um nobre cavaleiro errante que vaga em busca de aventura, ou um cetro para uma elegante princesa digna de nobres sentimentos. 
Sai do banheiro e observei como tudo estava plácido. Caminhei pela casa e sussurrei ao abajour apagado do lado direito do sofá maior, disse "Não fique tímido cavalheiro, não lhe concedo a dança pois vim até esta taberna em meio ao nada a convite daquele distinto Senhor ao lado da porta." logo me aproximei do jarro de orquídeas que colorem minha porta com seus tons branco-azulados.
Ao segurar o jarro delicadamente pude imaginar as mãos entrelaçadas em minha cintura, as mãos de um cavalheiro, tocando e não espremendo, sentindo e não esfregando, conduzindo e não carregando. A dança não poderia ter sido melhor, na realidade não havia sido até a conjunto que tocava naquela noite, um quarteto de cordas com violino, cello, viola e um baixo acustico, elegantes, iniciaram uma musica que encheu minha alma com um sentimento que já nem reconhecia mais, já não sabia que poderia ser possível sentir novamente. Era um sentido novo, como se os dias já não precisassem correr mais, como se o relógio não tivesse mais função alguma em minha vida, o tempo simplesmente parou.
Uma mistura de calma e segurança invadiram meu peito sem pedir licença, a porta se abriu e ele entrou, com um sorriso tímido nos lábios olhou em volta e quando seu olhar encontrou o meu ele parou, me fitou e pude escutar meu coração batendo mais depressa do que eu imaginava que fosse capaz de bater. A sensação foi tão arrebatadora que o gentil Sr. com quem eu dançava pode notar e cedeu a dança ao novo integrante da noite, que me tocou o ombro delicadamente, mãos de pluma, e não precisou dizer uma palavra sequer para que os passos pudessem navegar exatamente na mesma direção. Cada giro lento da dança era um giro a mais no mundo, sentia meus pés saindo milimetros do chão e sentia também que mesmo sem os movimentos da dança isso seria possível. Os giros faziam com que meus cabelos se puséssem qual bandeira pelo centro do pequeno salão, rubra qual paixão, qual sol que nasce entre nuvens de outono, aliás sempre acreditei que o outono fosse uma estação mediana, que não aceita sua própria temperatura, é densa, robusta e charmosa como nenhuma outra, o outono tem jeito de amor novo, deve ser isso. Quando a música parou eu pude agradecer pela graciosa parceria, ele beijou minha mão devagar, olhou para mim e sem dizer uma palavra se foi, se afastou aos poucos, eu o seguia com os olhos, ele passou pelo bar, pelos musicos e ao chegar na porta parou, se virou quase que em câmera lenta e sorriu para mim, sei que ele poderia ter sorrido para qualquer outra pessoa, por qualquer outro motivo mas algo dentro do peito diz que aquele sorriso, aquele último sorriso foi destinado aos meus lábios, sei disso pois eu o recebi como uma flecha certeira lançada em minha direção. 
Durante todo o restante da noite cada barulho, cada movimento repentino na neblina do chão me fazia olhar a porta, na esperança de que aquele sorriso adentrasse novamente aos meus últimos momentos naquele lugar. Todos os momentos são eternos se quisermos que eles sejam, todas as lembranças são as melhores se quisermos que elas sejam, todos os amores são para sempre, se quisermos que eles sejam e naquela noite, naquela exata noite, com a neblina colorindo o chão, com a música me fazendo flutuar, com o aroma do seu perfume ainda a me acariciar, naquela noite a única coisa que eu queria era mais um sorriso, pois naquele sorriso pude encontrar um oceano de paz como um barco ancorado em um porto seguro, aquele sorriso era um abraço. Mas ele não voltou, vagarosamente a neblina se dissipou e o chão do lugar cedeu espaço para o piso frio da sala de estar, as luzes foram sendo apagadas, uma a uma, pelo tabelião e pude ver novamente a porta da sala, o sofá, o abajour em seu lugar e o distinto Senhor com quem dancei se despediu e voltou para a lateral da porta, me acenou com uma mão, me sorriu e novamente pude reconhecer o jarro de orquídea branco-azulada do qual dependia sua existência.
Por último pude sentir meu vestido vermelho escarlate ser desenrolado em uma toalha recém-umedecida pela água de um banho demorado, até mesmo a noite se tornou mais clara depois que a música parou. Depois daquela noite nunca mais meus banhos demoraram mais que 20 minutos, em determinados momentos o relógio me lembra de que já se acabaram estes minutos e desperta como quem diz para tomar cuidado, para não deixar a neblina sair pela fresta da porta novamente e obedeço os carinhosos conselhos. Quem sabe um dia deixe-a escapar para que possa sentir novamente a segurança que tanto me fez bem, desde então aquela noite me serviu de lição, uma dura e sutil lição que diz, Nada é mais que luz e neblina, as vezes é preciso deixar a luz entrar para a dor sair e mesmo a dor é necessária, afinal a luz na neblina torna toda dor poética.

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